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A... seita
Mel já tinha passado dos 40. A idade não importava mais. Ela não tinha grandes perspectivas na vida depois que viu que a menininha de 20 dava em cima dos quarentões e cinquentões que ela tentava conseguir nas páginas de bate-papo.
Havia toda uma tática: primeiro ela se insinuava, inocente, como uma dama, quase ingênua. Afinal, ela tinha que conquistar pelas palavras, uma vez que a concorrência estava enorme. Seus dotes físicos não lhe ajudavam, mas tinha uma saúde de ferro, se bem que a mental estava falhando... Mas isso ninguém ainda notava, uma vez que no mundo virtual quanto mais doido mais normal...
Ela tinha uma lista imensa de admiradores. Todos eles eram "empresários e bem situados na vida", falavam várias línguas, seus dotes físicos eram invejáveis e passavam férias em lugares paradisíacos, os quais ela almejava conhecer junto a um deles. Até passaporte ela atualizava sistematicamente no afã de ser convidada para um passeio “de grátis” ou viver no exterior.
Só que a coisa estava ficando esquisita. Quanto mais ela se sentia quase no altar, mais as situações davam pra trás e o seu príncipe encantado saía pela culatra. Ela chegou a conhecer alguns pessoalmente, mas descobriu que mau hálito não se percebe pelo computador e que - a respeito de conta bancária - uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e ela acabava rachando o sanduíche do Bob’s com eles...., quando não era ela a pagar o rango.
Mel chegou a fazer uma estatística pessoal sobre o perfil de seus amantes virtuais. Ela tinha táticas infalíveis de abordagem e sedução dignas de uma ninfeta dos anos 50. Só faltava mesmo conseguir a cinturinha delas... Esse não era o maior problema, pois se conseguisse alguém fragilizado emocionalmente e novato nessa de páginas de relacionamento, ela estava feita.
O tempo foi passando e ela não conseguia mais largar o computador. Chegou a aprender tudo sobre informática, mesmo sem fazer curso, só de ficar viajando horas a fio nos inseguros caminhos da Internet. Até de hardware manjava. Sabia como ninguém a reconhecer o que o barulho de sua máquina dizia e qual era o defeito. Empurrava móveis e se enfiava em fios para dar um jeitinho básico. Tantos coolers guardados, tantas fontes carinhosamente à espera de serem trocadas, tantos teclados virgenzinhos esperando por seus dedinhos, caso durante a madrugada um defeito interrompesse um romance no MSN...
Aí, começou a ficar sinistro: ela baixou em seu computador do trabalho dois Messengers, três e-mails no Outlook - cada um com identidade diferente - e pagou (caro, inscrição de um ano) para receber cantadas e piscadas. Quando algum colega se aproximava, ela minimizava a tela e continuava o enfadante serviço da repartição.
O patrão já estava achando anormal sua dedicação ao trabalho, pois era a primeira a chegar e última a sair. Quando ele perguntava se ela queria sair mais cedo, Mel dizia que ainda não tinha terminado a planilha do final do mês, mesmo sendo dia 5...
Assim que chegava à sua casa, nem tomava banho ou jantava. Era direto para o seu computador. Deixou de ir a festas, de conhecer gente nova, de viajar. Até que tudo melhorou quando ela conseguiu comprar um laptop. Aí, sim, ficou independente e livre. Não havia reunião ou excursão que a impedisse de namorar.
A linda Mel começou a beber, não dormia mais, só comia nuggets e engordou horrores. As conversas com as amigas giravam sempre em torno dessa vida virtual e ela falava como se seus amores vivessem junto a ela. Até a hora do dentista dos caras ela sabia qual era. Ficou expert em dar conselhos, em mandar cartinhas com gifs, jurando eterno amor, em fazer grupinhos de mensagens de auto-ajuda.
O maior problema começou quando ela partia pra agressão com os amigos que conquistou. Pintava inveja, intrigas, deboches e recados desaforados. Ela passava a tarde toda com taquicardia porque fulaninha disse que fulaninho já tinha dono. E à noite passava as suas horas dizendo pra amiga que fulaninho tinha mais compatibilidade com o seu perfil...
Ela ficou viciada (se não, possuída por alguma entidade virtual) e sentiu que precisava de ajuda profissional. Sua vida pessoal não existia, sua vida virtual on line estava OFF.
Ouviu falar sobre um guru que exorcizava essas forças negativas e malignas. Decidiu chamá-lo em sua casa. Como uma dependente, antes da visita, Mel escreveu e-mails ofensivos a todos os seus amigos, fez sexo virtual com dois desconhecidos superdotados e enviou um monte de correntes, alertas quanto a vírus superpotentes e poesias jamais escritas por Carlos Drummond de Andrade. Assim, ela conseguiria ficar zen por algumas horas sem sentir abstinência...
Chega o guru:
Ele tinha cara de Nerd, mas parecia ser um cara legal. Olhou à sua volta, na salinha que precisava de uma faxina há meses, e encontrou o computador ligado, como um totem. Ele se ajoelhou em frente a ele, elevou os braços e gritou: “São Bilgeitz (da seita Os Seguidores Bilgeitzianos), faça um download e se junte a nós!”.
O pc chegou a estremecer. Mais estremecida ainda ficou Mel, que começou a ter arrepios, tais como os que sentia quando alguém a chamava de gostosa no chat. O guru percebeu que ela iniciava o processo de incorporação do demo informático e se afastou, arregalando os olhos. Mel começou a espumar e a rodar a cabeça a 360 graus, que faria inveja a Linda Blair.
O guru, com uma voz quase metálica, perguntou a ela: “Quem é você, anjo da treva?”. Mel não ouvia mais nada, possuída pela força do mal. Ela pulou repentinamente na sua cadeira e ficou de cócoras, teclando sem parar, obsessivamente, e mandando mensagens absurdas para todo mundo que tinha cadastrado, inclusive seu chefe. Mas não se importava muito, uma vez que posteriormente ela poderia explicar que tomaram conta de seu e-mail e escreveram por ela, algum invasor de e-mails...
O guru a agarrou, impedindo que continuasse a escrever, emitindo grunhidos: “Dilit! Namberloc! Breique, breiqueesc! Kepsloc!”, "Chift, chift!" Ela se contorcia e tentava soltar suas mãos, até que conseguiu com o dedão do pé dar ENTER. Foram para o espaço todas as ignonímias que ninguém esperou ler em seus correios eletrônicos.
Guru e Mel ficaram horas em luta corporal, até que pintou um lance... Mel sentiu que ali existia um homem que a protegia. O cheiro de suor a fazia lembrar que carne humana é bom mesmo. Guru, por sua vez, nunca tinha estado tão perto de uma cinturinha tão roliça, uma vez que praticava celibato em prol de uma vida totalmente cibernética. Eles se apaixonaram à primeira teclada. Foi um reboot em suas vidas.
Hoje eles estão casados, de papel passado, como qualquer ser normal. Guru ensinou a Mel que se ela quer usar o computador com inteligência e realmente de uma forma radical, que o faça em grande estilo.
Ele continua a fazer suas pajelanças. Ela entrou num curso internacional de hackers, além de dar aulinhas de Word para criancinhas, que, quem sabe, serão futuros discípulos de sua seita próspera e salvadora... Leila Marinho Lage
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 09/07/2008
Alterado em 27/12/2009
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