|
Sonata em Dó Maior
Estou me sentindo meio culpada, mas sei que as mulheres vão me compreender. Ah, se vão... O tema de hoje é sono. Já andei escrevendo tudo a respeito de sono (Entrando em alfa), ou melhor, a doutora começou o texto e eu o acabei, dando minhas dicas. Hoje resolvi contar a última do Josualdo, aquele... Sei que eu ronco., Todos em algum grau roncam, mas existem casos indecentes de roncos e eu acho que estou entrando nesta categoria. Peço sempre a Jô para me acordar quando eu começo a fazer barulho, o que vem acontecendo com frequência. Obviamente eu fico pau da vida quando ele me acorda, mas serve para eu mudar de posição e o deixar dormir. Como ele também ronca, imagino que os vizinhos pensem que dois porcos-espinho estão namorando na madrugada, mas tudo bem... Acontece que Josualdo, tadinho, nem tem dormido de tanto que ele anda esgotado ao mudar de posição (e pra outras cositas...). Daí, ele dá aquela dormidinha vespertina pra se preparar para as nossas noitadas eletrizantes. Numa dessas ele foi tirar a tal soneca na varanda. Estava um frio de rachar e o sol apareceu morninho. Nada como sentar no calor e dormir, não é? Isso é muito bem-vindo para os que estão envelhecendo. Os jovens vão descobrir isso um dia. Uma varanda simpática, uma cadeira gostosa e um coroa cansado: a tríade da preguiça. E lá foi Josualdo dormir enquanto eu fazia algo pra comer. Eu coordeno seu sono pelos roncos, quando não estou no quarto. Se ele fica em silêncio e de repente solta aquele som grotesco de quem está se afogando, sei que está em sono profundo. Se tosse, cospe, engasga, sei que está quase acordado e é hora de botar o café na mesa. Pior é quando ele respira lentamente, numa respiração tão superficial que nem vejo os movimentos do seu tórax. Isso, sim, é que dá nervoso. Mas logo ele solta o grunhido que me acalma. Da sala eu olhei meu querido namorado dormindo sentado, com a nuca apoiada na parede, com as mãos cruzadas e apoiadas na barriga e... a boca aberta. Fiquei olhando aquela cena feia, esperando que ele respirasse profundo. E nada... O cara não movia nada. Ele já é branco, não pega sol, então vocês podem concluir, como eu, que de longe ele parecia um morto, certo? O que era aquilo, meu Deus?... Eu permaneci quieta por alguns segundos, observando, para não entrar em desespero à toa e, pior, não o acordar à toa. Se ele não estava morto, ia ser muito chato minha intromissão naquele sono dos justos. Só que comecei realmente a me preocupar, pois o som dos porcos não acontecia. Fui chegando mais perto até que ele, sem virar a cabeça, apenas dirigindo o olhar de soslaio, levantou a mão espalmada em minha direção, lentamente, com a boca ainda aberta. Eu fiquei chocada. Mais parecia que ele era um moribundo pedindo perdão pelos pecados. Caminhei perplexa para ele, já esperando ouvir seu último desejo, e ele disse (com aquela bocona ainda aberta): “Me dá um beijo?...”. Ah, não! Era demais! Eu, toda apavorada, estava pensando que perdera meu Jô, que apesar de ser um idiota, imbecil, ridículo, faz parte de minha vida e de tudo que mais amo. Xinguei até a última geração dele e voltei pra cozinha chutando tudo. De noite, mais calma, eu deitei a cabeça em seu peito e observei como ele dorme. Ô coisinha irritante... Ele não respira! Acho que as trocas gasosas de Josualdo devem ser como a dos peixes, ou, então, ele faz fotossíntese. Quando menos se espera, ele puxa o ar pra dentro e, tal qual o Vesúvio, solta aquele estrondo! Enquanto ele torce para eu parar de roncar, eu fico na expectativa de ele soltar algum som. Só sei de uma coisa: este homem me preocupou naquele dia e eu pude ver o quanto ele é importante para mim e quanta falta ele faria em minha vida.
Dona Menô (Leila Marinho Lage)
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 17/07/2008
Alterado em 14/10/2009
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
|