Clube da Menô

A minha vida só é possível incrementada!

Textos


DISSOCIAÇÃO

Ela é muito parecida com o irmão, meu pai. Minha tia tem os olhos dele. Uma vida cheia de tristezas e labirintos mentais...

Hoje ela me ligou, dizendo que precisamos "reatar a proximidade". Eu a vi pela última vez há uns 4 anos, numa festa de família. Hoje de manhã eu conversava ao telefone:

- "Como a senhora vai, tia?".


- "Estou bem, mas usando bengala, Leilinha... A mente está muito bem. Consegui vencer todos os fantasmas que me atormentaram tantos anos".


Minha tia tinha (mas não tem mais) algum problema mental durante sua juventude toda. Diziam que era esquizofrenia - talvez até seja...


Uma vez ela me contou suas particularidades. Isso faz muitos anos. Eu disse, como médica, que ela tinha que gritar, protestar, quando a amarravam em camisas de força. Como ela era muito educada, não entendeu bem quando eu recomendei que ela tinha que falar palavrões, mas acatou...


Um dia, quando ela se aborreceu com alguma coisa rotineira em casa, começou a praguejar e jogou um ferro pela janela, com raiva - e disse que foi eu quem mandou. Ela tinha me dito que quando estava zangada, como qualquer pessoa normal, achavam que ela estava em crise, então, como seria internada de qualquer jeito, decidiu se desabafar.

No mesmo dia me ligaram, reclamando sobre meus conselhos. Também pediram-me de volta um anel que ela me deu. Alegaram que ela não respondia por si. Eu disse que se ela não estava normal quando me deu o anel, daí, quando estivesse com suas faculdades mentais normais, que me pedisse o anel de volta. E posteriormente ela me ligou dizendo que o anel era meu mesmo e que no dia ela estava sabendo exatamente o que fazia. O anel não tem tanto valor, mas por mim é guardado como uma jóia até hoje.


Minha tia é minha madrinha. Ela jamais me esqueceu; ela jamais me esquece. Já perdeu um filho (que tinha doença cardíaca e mental também); já passou por muitas por aí...

Ela me dizia que sabia quando ia entrar no limbo. Era como uma aura. Ela sabia que ia dissociar, sair do ar. Aí, os parentes a internavam e tudo bem. Ela era dopada e voltava traquilinha pra casa.


Por muitos anos, nos primórdios da doença, ela já foi submetida a insulinoterapia e eletrochoque pra ficar zen... Com o tempo, e com sua luta constante contra a insanidade, ela por si só procurou os médicos que achou que iam tratar bem dela - e conseguiu. Isso a libertou do controle dos parentes e resgatou seus direitos como cidadã. Hoje ela é "normal".

Os parentes foram morrendo, outros ficando doentes e ela está lá, durona, sã, forte e cuidando das vidas de todos aqueles que a julgaram incapaz socialmente.

Meu pai morreu de repente do coração, enquanto dormia, mas ele tinha distúrbios psiquiátricos também. Quando eu comecei a perceber que ele tinha comportamentos estranhos, tentei tratá-lo. Mas como fazer com que uma pessoa, que até então era considerada normal e responsável, fosse a um psiquiatra?!


Eu estava com minha mãe doente. Meu pai também estava doente, mas com um problema mental, e com o físico saudável, forte. Ele começou a me odiar sem mais nem menos... Ele me olhava e eu via nos olhos dele muita raiva, talvez por eu estar mais próxima dele do que os outros familiares.


Seu olhar não era o olhar de meu pai, aquele que sempre sustentou a família, sempre trabalhou, muito respeitado e admirado. Era o olhar de quem tinha algo muito ruim dentro de si. Eu sentia, mas não aceitava. Eu só tinha ódio dentro de mim, até porque ninguém me ajudava a entender e não me amparava como eu precisava. Era eu e só eu.


Briguei muito com ele até entender que ele não respondia por si. Eu tinha naquela época muita carga nas minhas costas. Os outros componentes da família, que moravam no mesmo teto, determinaram que eu, a médica, tinha que tomar as rédeas da situação. O engraçado é que eu tinha apenas obrigações, mas ninguém queria saber exatamente o que eu passava.

Um dia meu pai deixou o gás do fogão ligado. Quando eu acordei vi que a casa estava contaminada, justamente quando ele tentava acender um fósforo. Agarrei-o e o impedi de acender a chama. Ele queria fazer café... Daí, meu pai correu à sua garagem- a garagem das ferramentas, das coisinhas dele- e pegou uma machadinha pra nos matar...

Minha mãe, mesmo doente, com câncer, ligou para a polícia, morrendo por dentro por ter que fazer aquilo. Policiais o renderam em camisa de força. Enquanto isso os vizinhos, alguns que já tinham recriminado as atitudes de meu pai, entenderam, então, que um homem insano estava sendo expulso de sua casa.


Meu pai foi algemado, e até ser internado, ele ficou olhando pra mim e dizendo: "Eu te odeio, miserável!". Eu olhava para o nada e para ele, e chorava. Minha vida ali não tinha a menor graça.


Naquele dia eu rezei e aconteceu algo que realmente eu posso dizer que foi de Deus. Um médico anos antes tinha cuidado dele. Era um psiquiatra. Meu pai estava sendo tratado por um psiquiatra, mas achando que era um clínico. Mas como meu pai ainda tinha ciência das coisas, desistiu do acompanhamento e dos remédios.

No dia do surto psicótico este médico estava na emergência do hospital psiquiátrico. Ele era o diretor e jamais ia à emergência (jamais), mas naquele dia algo o impeliu a atender pacientes que chegavam. O primeiro paciente foi meu pai... Eu tinha rezado muito para que Dr Wilson surgisse na minha frente - e eu nem sabia que ele trabalhava lá...

Meu pai fez muita merda até o dia de dissociar... Até tentei interditá-lo, mas isso demandava uma burocracia enorme! Ninguém queria me ajudar e testemunhar o que ele fazia em casa e na rua. Muita grana foi perdida, muita gente se aproveitou das loucuras dele. Todos os seus clientes se afastaram. Os vizinhos queriam dar queixa de um homem pelado no terraço; apareciam pessoas que diziam ter sido atropeladas por ele.

Um gerente de banco me fez passar o maior vexame quando disse que meu pai estava negativo no saldo e fazendo loucuras monetárias. O mesmo banco que fez enormes negócios com ele ao longo de décadas. O gerente comeu muito salgadinho com cerveja nas festinhas em minha casa, mas não fui poupada de passar vergonha por coisas que eu não tinha cometido.


Um dia meu pai procurou atendimento em um hospital público, apesar de ter direito a plano de saúde que eu pagava. Soube que ele estava se tratando do ouvido e que ia ser operado no dia seguinte. Até aí, tudo bem... O problema foi ter descoberto que o médico que o acompanhava ganhou uma aparelhagem de otorrinolaringologia caríssima de presente de meu pai. E o médico sigilosamente o tratava dos "problemas mentais", de acordo com as receitas que prescreveu e eu vim a descobrir.


Isso aconteceu no Hospital de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, muitos anos atrás. Fui ao diretor pra reclamar do médico, que nem ao menos usava o carimbo do CRM dele, e, sim, de outro colega... Deixei pra lá e mandei o tal médico meter a aparelhagem no cu, mas avisei ao diretor que um criminoso se aproveitava de um doente mental.


Eu tinha muito mais o que fazer do que ficar em andamentos de processos judiciais que não eu conseguiria arcar financeiramente. O otorrino hoje deve ter tirado muito lucro com a aparelhagem e provavelmente é bem conceituado na sociedade médica, um profissional idôneo...


Depois que meu pai começou a usar seus medicamentos para a mente, jamais tive um pai normal de novo, porém não tinha um louco em casa. Ele estava controlado, mas, mesmo assim, era um tormento cuidar dele. Eu tinha que entrar no box pra dar banho nele, lutando com um homem de 1:80m, depois vestindo, depois dando papinha, depois examinando o coração, o pulso etc...


Minha mãe, sua esposa, tinha outro nome, como também ele dava nomes diferentes a todos em casa... Eu tinha uma criança enorme pra cuidar todos os dias, enquanto vivia o drama de minha mãe, e tendo que trabalhar!


Um dia minha mãe teve uma descompensação do coração e tinha que ser internada às pressas. Ela antes quis ir ao quarto para avisar a meu pai que ia se ausentar e talvez não voltar. Ele acordou e disse: "Boa viagem, mamãe". Foi triste...


Quando meu pai morreu, sendo constatado por minha mãe, eu dei graças a Deus. Estava sendo insuportável participar de tanto drama. Acho que minha mãe só sobreviveu mais alguns anos porque amava os filhos e neles se apegou.


Um dia eu amei meu pai, na época da doença. Foi quando eu fiz a barba dele. Eu toquei seu rosto, tentei ver além dos olhos distantes, fiz um carinho e ele disse; "Você me trata bem. Eu gosto de você". Lamentei não ter tido antes tanta atenção com ele quanto naquele dia.

Eu comprava pijamas cheios de flores e ele dizia que eu tinha um mau gosto terrível, que eu era brega... Eu fazia de sacanagem, mas ele gostava quando eu dava de presente um jogging esperto, mesmo tendo que colocar fralda por dentro... Dois anos de babá, uma médica babá que se dividia entre seu trabalho e os dramas de casa, não tendo ajuda do marido ou dos outros irmãos...


Minha tia, que tem os olhos de meu pai, lembra de mim em todos os feriados religiosos, no meu aniversário, sempre. E eu jamais ligo pra ela, nunca! Ela tem minha carga genética, mora bem pertinho de mim e eu nem penso que ela existe. Ela me fez ver que preciso realmente resgatar meu passado.


Comecei hoje...

Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 11/06/2009
Alterado em 21/06/2009



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