Eu queria ter escrito isto...
Drummond é considerado pelos entendidos em literatura como um poeta de médio valor... Talvez ele tenha superado as críticas por ser a alma do povo brasileiro.
Ele foi romântco, sarcástico, foi triste, foi alegre, sempre com uma linguagem fácil de ser digerida e com a inteligência da palavra a serviço do sentimento.
Nós arquivamos um certo número de palavras e expressões em nossa mente. Estas serão usadas pelo nosso computador cerebral, fazendo concordâncias e associações, como um jogo de dominó. Depende de nossa capacidade intelectual e a constante procura pelo aperfeiçoamento arquivar mais e mais informações. Mas digo: a inteligência não é o suficiente para que sejamos artistas. Drummond foi.
Todo mundo conhece uma ou outra coisa dele: frases, poesias, coisas soltas. Uma boa parte atribui a ele uma grandeza de textos que ele jamais escreveria. Não precisamos ser entendidos em Drummond, mas, pelo menos, temos que conhecer alguma coisinha a mais do que se coloca na Internet. É preciso (por obrigação e por reconhecimento) ler a vida dele, o seu final, sua trajetória e meia dúzia de textos, para depois podermos analisar - simploriamente decerto - quem foi essa personagem tão carismática.
Gosto de Drummond pela sonoridade. Ele é sonoro nos poemas. É só colocar Juca de Oliveira recitando algo dele que perceberemos isso. Melhor ainda: ouvir Maria Bethânia declamando Drummond, antes de entrar com aquele vozeirão.
Drummond é sonoro, mas o que me fascina nele é a modernidade de seus contos e crônicas, a ironia, o humor, a espontaneidade, a jovialidade.
Passo abaixo um conto dele, que eu certamente gostaria de ter escrito. O tema reflete nossos dias:
"Depois do jantar
Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
- Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
- Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
- 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
- Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
- Como?
- Já disse. Vai passando o relógio.
- Mas...
- Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
- Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
- Agora posso continuar?
- Continuar o quê?
- O passeio. Eu estava passeando, não viu?
- Vi, sim. Espera um pouco.
- Esperar o quê?
- Passa a carteira.
- Mas...
- Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
- Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
- E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
- Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
- Diga.
- Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
- Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
- Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
- É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
- Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
- Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
- Não precisa, não precisa.
- Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
- Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
- Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
- Claro.
- Você, o assaltado. Certo?
- Confere.
- Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
- Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
- Tá bom, não se discute.
- Vamos, procure nos... nos escaninhos.
- Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
- Deixe ao menos tirar os documentos?
- Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
- Nem uma de quinhentos? Uma só.
- Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
- Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
- Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé."
Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 05/09/2009
Alterado em 05/09/2009