Clube da Menô

A minha vida só é possível incrementada!

Textos

Acessibilidade e Inclusão Social



Como eu não raramente assisto a programas de TV, apenas ouvia falar sobre o episódio registrado na novela Viver a Vida, do autor Manoel Carlos, onde a personagem Luciana, uma cadeirante, interpretada pela atriz Alinne Moraes, ia à praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, e se reunia com outros deficientes físicos num espaço adaptado a essas pessoas, dando condições de se divertirem e usufruírem deste lazer.

Eu não me liguei muito para o assunto, pois estava muito envolvida com meus problemas particulares e meu trabalho, até que recebi um e-mail de, uma amiga e paciente, Andrea Salgado, avisando de seu novo blog e me convidando para ir uma praia diferente...

Visitei o blog de Andrea (Determinação e Preseverança), que fala de sua vida e seu acidente em outubro de 2003, no qual teve suas pernas amputadas por uma hélice de uma lancha, dirigida por um piloto alcoolizado. Além disso, ela procura informar sobre os eventos e os projetos de inclusão social das pessoas com alguma deficiência. Foi por lá que conheci e me encantei com o Espaço Novo Ser, uma ONG que, além de outras atividades, promove o projeto “Praia para Todos”, a praia adaptada.

A minha praia

A equipe do Novo Ser se instala por algum tempo em algumas praias do Rio. Eles incentivam e mostram à sociedade como se pode vencer os abstáculos pelo quais o deficiente se depara. Eles têm programas de esporte adaptado, banho de mar em cadeiras anfíbias etc.

Eu me emocionei em Ipanema, junto a pessoas com outra visão da vida. Pessoas que passaram por fatalidades que lhes causaram uma deficiência, mas nem por isso se sentem deficientes.



À minha direita está Fábio Fernandes, conselheiro da ONG, estudante de Direito e praticante de esportes radicais, como o voo livre. Sofreu um acidente em 1999 e, desde então, vem lutando pelos direitos da pessoa com deficiência.

À minha esquerda está Andrea Salgado. Muito antes de seu acidente eu participei da chegada de seus dois filhos a este mundo.

À minha volta estão pessoas que participam intensamente deste projeto, cada um com uma função, profissionais, voluntários e cidadãos que contribuem com suas experiências e suas vidas para oferecer um mundo melhor e mais justo a todos.

Encontrando caminhos



Faça de conta que você acordou numa bela manhã e descobriu que estava paralisado do pescoço pra baixo. Impossível?! Não, não é impossível...

Depois de algum tempo você resgata a sua vida e começa a ver beleza na mesma, porém descobre que as pessoas na sua sociedade não ligam pra você, que não percebem as suas dificuldades para transporte e para se locomover na sua cidade. O ônibus que deveria ter uma rampa que funcione, não funciona - e este ônibus passa de hora em hora (ou nem passa). A sua autonomia depende de suas condições financeiras. Daí você descobre que além da coisa de você ser um latino-americano, você é um latino-americano pobre!

Você começa a ficar meio nervoso... Aí vem uma coisa de discriminação na sua cabeça, uma vez impossibilitado de usufruir de seus direitos, principalmente de ir e vir pra onde desejar; descobre que as ruas não foram feitas para você e que até sair para um passeio na praia é um verdadeiro cerimonial. Nem precisa ir longe, não! Ao sair de casa, você encontra muitas barreiras nas calçadas e no trânsito.



Estão querendo que você fique mais dependente do que é?... Querem que você não pertença à clã dos “normais"?... A sua “praia” não é a dos outros. Por que isso? Já não basta o destino ter limitado seu corpo e agora limitam sua vontade?!

Muito mais é preciso do que mídia. É preciso consciência e respeito de nossa sociedade, não só agora, mas sempre. Aqui está a rampa de acesso para uma praia e que deveria ser obrigatória em todas as praias, mas ainda não é. Uma delícia pisar nela, mas é preciso encontrar NESTA PRAIA muito mais que exposições ou eventos. É preciso fazer disso algo fixo, obrigatório em todos os chãos onde o cidadão com alguma deficiência física pise.

À flor da pele



A coisa mais gostosa do mundo é ter contato com a natureza, com o mar, o vento soprando na nossa pele. Depois disso a gente quer sentir o cheiro das coisas; enxergar as paisagens bonitas; ver cores; poder tocar e perceber as formas de tudo; poder andar; poder respirar, alcançar tudo que queremos, tudo que nos encanta. Mais que tudo, é maravilhoso não sentir dor, apenas sentir coisas boas.

Eu quis sempre acreditar que o nosso mundo é meigo, que não sou uma sonhadora apenas. Eu vi um pequeno exemplo disso num domingo na praia, quando observava pessoas em cadeiras anfíbias, sentindo o mar calmo (coisa rara na orla do Rio de Janeiro).

A vida é tão rara



Ouçam a música "Paciência".

Cheguei à praia achando que a coisa ia ser muito cerimonial, chata até... Daí comecei a fotografar um grupo de escoteiros - e nada de Andrea...

Eu estava misturada com pessoas em cadeiras de rodas, pessoas que não andavam e crianças com problemas motores. Acho que não entendiam como é que eu, mesmo uma estranha no ninho, me sentia muito à vontade, apesar de desconhecida até então.



Retirei meus sapatos e pisei na areia (eu devia ter ido de biquíni...). Comecei a fotografar aquele mundo lindo de pessoas iluminadas. Sem eu perceber, eu estava apoiando minha máquina fotográfica no ombro de alguém. Pedi desculpas e a pessoa nem ligou; até achou o maior barato. De repente, sem perceber, de tanta gente apinhada, eu acabei encostando minha mão na bunda de uma senhora, que provavelmente era mãe de algum cadeirante. Ela me respondeu, quando me desculpei outra vez: "Ora! Se a praia é pra todos, a minha bunda também é!".

Daí Andrea Salgado apareceu, aliás ela estava à minha frente e eu nem percebi, sentadinha em sua cadeira de rodas, toda linda, de óculos escuros e bronzeadona. Através dela conheci o resto do grupo e, aí sim, eu me senti mais em casa Mais à vontade ainda eu fiquei quando ela começou a apostar corrida com Dani.



Andrea era remadora, mas não queria ficar com costas musculosas e preferiu natação. Dani é nadadora e anda com muletas, mas com dificuldade. Andrea queria apostar com sua amiga quem chegava primeiro no mar, arrastando-se pela areia. Dani falou: "Poxa! É muito mais fácil fazer isso não tendo as pernas, mas espera quando eu chegar na água e veremos quem nada melhor!".

Participação



A praia adaptada já existe em outros países - eu sei -, como também existem lá fora outros espaços ABERTOS em outros setores para os deficientes físicos. O que eu não entendo é existir um projeto como o do “Novo Ser”, em voga na televisão e outras midias, projeto financiado pela Michelin, e pouca gente aparecer nos eventos dos fins de semana.

Vejo que as mulheres estão mais atuantes do que os homens. Vejo que o povo precisa saber do trabalho dessa turma - o povão mesmo, pois isso não é só para pessoas com boas condições financeiras. Muito ainda há o que fazer.

Aqui é uma cena em Ipanema, no dia 16 de maio de 2010, no último evento na zona Sul do Rio. Nos próximos dois fins de semana seguirão com o mesmo projeto para Ramos, no piscinão.

Uma força estranha


 
Uma força estranha leva Andrea Salgado (e tantas milhares de pessoas na mesma situação) a cantar e caminhar, mesmo sem pernas, mesmo com outras dificuldades na vida. Ela nunca foi rica, muito pelo contrário. Ela poderia ser mais uma das pessoas esquecidas na sociedade, vivendo no ostracismo dos seus dramas, mas algo neste mundo a determinou aparecer - então ela aparece...

Eu a conheço de outros "mares" e sei que ela é alegre de natureza, uma força muito estranha a acompanha. Também já presenciei alguns depoimentos tristes dela; coisas que só mesmo quem passa as mesmas dificuldades do seu dia a dia pode saber.



Aqui ela aposta corrida com uma amiga, obviamente chegando em primeiro lugar... Seus filhos nem se ligam ao fato de ela estar se arrastando na areia, tentando chegar ao mar - pois isso é uma coisa muito comum até em casa, em tarefas rotineiras há alguns anos.

Ela até pode usar pernas mecânicas, mas quem sabe o quanto isto é difícil, saberá por que ela prefere usar seus braços.

Dependência Versus Respeito



Temos muitas piadas sobre "aleijadinhos". A gente ri pra caramba ao ouvir uma. Há uma que eu sempre ouço:

Um moço com a mão paralisada entrou na igreja e pediu a Deus que deixasse sua mão igual à outra. Ele saiu com as duas sem movimento...

Até entendo que o sarcasmo nada mais é do que o inconsciente comum, o medo, o retrato de nossos temores. A gente ri da desgraça, tanto das nossas quanto das alheias, mas de repente a gente se vê numa enrascada diante de situações ridículas que nos fazem sentir menor.

Hoje foi assim comigo: eu acordei desesperada com dor no olho esquerdo. Havia um corpo estranho raspando minha córnea. Ainda bem que eu sou médica e tenho amigos médicos, portanto o atendimento foi imediato. Retiraram a coisa do meu olho e agora passarei uma semana cuidando do que é muito importante na minha vida profissional: minha visão.

Deixo aqui registrado que eu liguei para minha secretária para que ela me informar o número do prédio do oftalmo. Ela nada entendia do meu desespero e eu fui muito mal-educada com ela ao telefone. Eu estava sozinha andando na rua e cheia de dor; mal conseguia enxergar as coisas. As pessoas que passavam ao meu lado não poderiam imaginar o que acontecia comigo.

Vi que duas lentes na minha cara eram mais importantes que meu corpo inteiro naquele momento, e ninguém poderia me ajudar senão o meu médico. Quando lá cheguei, ele me disse: "Você está nervosa. Calma...". Eu respondi: "Po! Como?!".

Ele me perguntou se a remela que eu tinha era branca ou amarela. Eu não entendi, porque eu não tinha remela nenhuma! A coisa tinha acontecido uma hora antes! Ele continuou a perguntar de uma remela que eu não tenho... Eu tive que olhar pra ele bem séria e dizer: “Cara, eu to com dor no meu buraco do olho. Isto aconteceu quando eu acordei, sacou?!".

Entrou uma fagulha no meu olho talvez durante a noite de ontem. Isso fez a festa na minha visão. Como não estou acostumada a ver de um olho só, imaginem o que meu cérebro está sofrendo mais que eu...

Agora, por favor, imaginem tais situações:

- Vocês não podem andar e de repente acontece uma dor de barriga.
- Vocês ficaram cegos e um barulho acontece. Não sabem do que se trata e dependem de quem enxerga.
- Vocês não têm mãos funcionantes para a higiene após as necessidades fisiológicas.
- Vocês são dependentes de máquinas para respirar ou até para substituir seus rins.



Agora me respondam se vale a pena se gabar de certas coisas materiais. Suas vidas são tão frágeis quanto seus olhos!

Leila Marinho Lage
Fotos da autora
http://www.clubedadonameno.com
Rio, 20 de maio de 2010













Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 20/05/2010
Alterado em 26/05/2010
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