Não deixa de ser biografia - C'est ma vie!!!
Tenho que desabafar. Estou me sentindo como alguém que foi esmagado por um trator.
Começou o dia com uma paciente ligando para o meu celular.
Não é nenhuma novidade ligarem para mim, mas o motivo me deixou muito danada da vida:
Minha secretária tinha atendido no telefone convencional a ligação de uma moça que “queria porque queria” falar comigo naquela hora. O consultório estava cheio e eu estava correndo, para não atrasar as pessoas. A minha atendente perguntou se era urgente (não era) e pediu para retornar no final do dia.
A paciente, não conformada, decidiu ligar para meu celular de imediato. Eu parei o que estava fazendo para atender, porque poderia ser alguma urgência.
Ao perguntar porque fizera aquilo, ela me respondeu que não tinha paciência para esperar. Claro que eu respondi à altura...
Depois foi outra pessoa. Desta vez, na consulta:
“Quero fazer “todos os exames possíveis e imagináveis, de todo tipo” - um check up. Quero um Hemograma completo”.
Hemograma, gente, estuda os glóbulos vermelhos (hemácias), os brancos (leucócitos) e plaquetas, além da sedimentação do plasma. Isso não é exame completo de nada. A turma pensa que, quando pedimos exames, tudo é pedido e eles saem totalmente investigados. A ponto de lerem os padrões normais dos resultados e tentarem se diagnosticar.
Todo exame, seja laboratorial ou de imagens, tem que estar associado ao exame físico do paciente e ao que apresenta como queixa. Mesmo exames de rotina devem ser escolhidos pelo médico.
É lógico que o paciente pode e deve mostrar interesse em ser avaliado rotineiramente, mas daí a decidir o que fazer e quando fazer, é distorcer totalmente a função de um médico. Com certeza, se tivessem que pagar, ao invés de usarem um plano de saúde, pensariam duas vezes antes de os exigirem.
Já houve ocasião de me mandarem pedir Tomografia Computadorizada do Corpo Inteiro para ver se estava tudo legal; e se não desse nada, para eu pedir Ressonância Magnética também...
Depois entrou uma outra me “mandando” pedir uma Ultra- Sonografia para ver o intestino e o estômago, pois sentia dores abdominais: “Me pede aí uma Ultra, que eu acho que a úlcera voltou e não quero fazer endoscopia”.
Ultra-Sonografia não vê a maioria das doenças de estômago e do intestino. Você pode ter uma Ultra Sonografia normalíssima e ter um tumor intestinal ou gástrico e bem grande, inclusive; da mesma forma que o hemograma completo pode estar normal e a pessoa ter um enfarte naquele dia mesmo!
As grávidas, então, são experts em fazer estas loucuras. Deixam de ir à consulta marcada, só porque viram os resultados dos exames e protelam o Pré-Natal para quando “der um tempinho”....
A gravidez é algo dinâmico - toda hora estão acontecendo novidades - e muitas situações, que acontecem silenciosamente, impõem a avaliação do obstetra.
Medicina é muito difícil. Cada paciente tem uma característica e nem tudo os livros ensinam, muito menos se observa em certos exames. O acompanhamento rigoroso, o interesse pelo paciente, a confiança e o respeito pelo trabalho do médico vão definir o sucesso de cada caso.
Fatalidades acontecem e erros se cometem. Muito mais erros vão acontecer se pessoas não credenciadas substituírem o profissional!
Entra outra:
“Ah, eu estava com cistite (o que chamam a dor ao urinar) e resolvi tomar um antibiótico que eu tinha lá em casa”.
Infecção urinária é a causa mais comum de cistite (inflamação na bexiga) e as bactérias estão se tornando resistentes aos antibióticos, principalmente se estes são usados indiscriminadamente.
A uretra da mulher é curta em relação à do homem e as bactérias entram com mais frequência, infeccionando a bexiga e podendo ascender pelo trato urinário, acometendo até os rins. Além do mais, cistite pode ter outras causas, tais como: infecções vaginais, tumores e até por trauma no coito.
Deve-se, dentro do possível, se fazer cultura de urina previamente à introdução do antibiótico. A escolha da medicação e o tempo de uso ficam na dependência da decisão do médico.
Sabem o que é cistite de lua de mel? Sabem...as, não sabem a razão, né? Hoje em dia, quase ninguém mais “inaugura” no casamento, mas o termo ficou. O que acontece é que o trauma do coito, diretamente na uretra feminina, causa um edema e, horas depois, a mulher sente dificuldade em urinar, com sintomas de dor.
O mesmo pode acontecer com o homem. Na verdade, não é uma cistite e, sim, uma uretrite traumática. Tanto no homem quanto na mulher, se for esta a causa da disúria, os sintomas passarão rapidamente.
É importante alertar que o coito facilita a entrada de bactérias através da uretra (mais na mulher que no homem), levando a infecção urinária. Mas, os sintomas acontecem ao longo dos dias – não imediatamente após a relação sexual. A dica é: lavar antes (o casal), beber água e urinar depois – lavar depois, é uma consequência óbvia...
Daqui a pouco liga outra paciente. Disse que era urgente para poder interromper uma consulta:
- “Olha, eu estou com isso e aquilo. Daí, acontece isso e aquilo, então começo a sentir isso e aquilo. O que acha que é? Dá pra me receitar uma coisinha aí? Será que é grave?”.
Bem, se eu fosse médium, talvez pudesse ter uma solução, mas ainda não alcancei este estágio.
- “Faça o seguinte, minha filha (aí, eu arraso de vez): Venha aqui que eu lhe atendo e verifico o que há. Ainda não instalei o disque-vagina no telefone”.
- “Eu não posso. Sou uma profissional e não posso largar o meu trabalho!”, disse a “madama”.
- “Tá certo, minha linda (estou perdendo a paciência...). Venha amanhã ou mais tarde”.
- “Eu não posso. Por isso estou ligando. Odeio salas de espera cheias!” – parece até que eu também gosto...
- “Ok , meu amor (estou, realmente, P da vida), então eu vou me concentrar aqui e você aí, pelo telefone, e vamos fazer uma corrente espiritual. Vou tirar todos os seus males. Vamos começar:
Disque 1 se tem dor à direita
Disque2 se for á esquerda
Se a dor for em todos os lados, coloque mais uma moeda”.
Onde fica Pasárgada? Manoel Bandeira morreu sem fazer o mapa. Dá vontade de largar tudo e me mudar pra lá...
Próxima vítima:
“Eu não voltei para pegar o preventivo porque você falou que estava tudo bem na hora que me examinou”.
Tenho o costume de olhar todos os resultados de exames colpocitológicos que chegam, e espero que as responsáveis voltem para pegarem seus resultados. Quando é alguma coisa muito séria, até o próprio laboratório liga, mas, hão de convir, é impossível a qualquer médico ficar antenado em tudo quanto é resultado.
Não é admissível que uma mulher faça seu preventivo e só tenha curiosidade de saber o resultado muitos meses depois.
Dependemos de exames complementares específicos e de acompanhamento. Se a paciente não colabora, tudo está perdido. Não é por falta de esclarecimentos da minha parte...
Vale explicar o que é colpocitologia. É o estudo do material colhido, por espátulas e escovas, da secreção da vagina e do colo do útero, para se avaliar no microscópio possíveis células malignas, pré-malignas e infecções, além de se ter uma idéia da fase hormonal em que a paciente está naquele momento.
O exame é basicamente para se investigar o câncer do colo do útero - o mais comum na mulher. A olho nu, não podemos saber isso, na maioria das vezes. Deve ser realizado a cada ano ou a cada semestre. Em algumas situações, em períodos mais curtos.
Não sou da opinião que se possa passar mais de um ano sem o preventivo, principalmente na mulher com vida sexual ativa. É uma oportunidade de se ver a paciente na parte ginecológica (mamas, útero, ovários, vulva, vagina, colo do útero), na parte clínica e endócrina.
Muitas doenças clínicas são detectadas no consultório de ginecologia, justamente por esta periodicidade nas consultas e o contato constante com o médico.
O segredo é detectar as mais variadas doenças ainda numa fase inicial - o que chamamos de diagnóstico precoce.
“Preventivo” é mais que a coleta de coisas da vagina - é uma infinidade de pesquisas para se assegurar que a mulher está bem. Isso é prevenção, profilaxia.
Não se substitui o médico por exames. Não existe médico que tenha uma conduta perfeita sem exames complementares. Não se pode inverter situações, nem confundir liberdade da relação médico-paciente com abuso.
Ainda estou muito crua na medicina - vou morrer assim. Tenho de experiência muitos anos e posso dizer, de carteirinha, que cada caso é um caso e que temos sempre muito o que aprender. O que não entendo é o paciente se achar “médico” suficiente para conduzir sua doença e tratar o seu médico como mão de obra barata.
O dia foi encerrado com chave de ouro. Deixem-me, antes, fazer um protesto:
Esta coisa de atender por convênios e planos de saúde a preços módicos, afeta diretamente a qualidade deste atendimento. O médico fica entre a cruz e a espada. Ele precisa se sustentar e tem que ser bom, a despeito do que ganha. Ele não pode perder tempo, mas dar atenção a cada caso, como se estivesse sendo muito bem remunerado e reconhecido pelo seu empenho.
Daí, vem uma paciente e trata este médico como o seu empregado (geralmente as saudáveis), determinando coisas que a ela não compete. Até a hora em que a mesma vai precisar de ajuda. Aí, o médico terá importância - alguma importância.
Vêem desta forma: o médico, quando cura, é sua obrigação; quando não cura ou falha, é por sua culpa e incompetência.
As coisas mudaram e as pessoas estão cada vez mais secas e superficiais. Isso se percebe no que a gente vê no dia a dia. Foi o caso da minha última consulta de hoje.
A paciente voltava, depois de um mês, para pegar o seu preventivo e ser examinada de novo. Desta vez, seria uma consulta mais longa e detalhada. Eu já tinha anotado todo o roteiro do que se devia fazer e estudava o caso antes de sua entrada em minha sala.
Chega a secretária perto de mim, para me informar que a paciente não queria assinar a sua consulta (um cupom de convênio), pois tinha sido orientada a negar qualquer assinatura de consulta que fosse para resultados. Ela seria descontada em seu salário, pela empresa onde trabalhava, em uma miséria, que não daria nem “para uma média que não seja requentada e um copo d’água bem gelada”.
Eu não estava a fim de criar confusão e, apenas, mandei a secretária lhe explicar que seria examinada, apesar de receber seu resultado; que eu estava ocupando um horário; que teria que estudar seu caso. Isso geraria um pagamento pelos meus serviços prestados (no caso, pelo seu convênio).
Posso dizer que eu estava em um bom dia, pois estava muito calma e cordial. Ela não pediu, nem falou de forma educada. Apenas impunha suas decisões e me obrigava a lhe mostrar quem é que mandava em quê lá dentro.
Eu estava pronta para brigar com ela, mas nada aconteceu, nenhuma reclamação, nada. Ela entrou, sentou, depois foi examinada e falamos por quase uma hora – o tempo necessário para se resolver tudo.
Ela se despediu sorridente. Cara de pau...
Essa não vai voltar. sabem por quê? Porque existe um médico para cada paciente e paciente para cada médico. As coisas são tão naturais, que, espontaneamente, elas vão embora. Algumas retornam anos depois, mas, aí, mais civilizadas, depois de baterem cabeça por aí.
Vale dizer que, apesar de eu não sustentar nenhuma instituição de caridade ou dar esmola a pobres na rua, tenho feito minha parte em bondades. Não para ser aceita pelo Papai do Céu, mas por sentir que algumas pessoas não têm condições de se tratar.
Muitas vezes, eu me sinto mal em cobrar uma consulta particular, mesmo sendo meérito meu.
Eu percebo que aquela pessoa, que está me pagando, vai ter dificuldades de continuar seu tratamento.
Quantas vezes eu devolvi a importância da consulta para que a pessoa pudesse fazer um exame ou comprar seus remédios...
Agora, isso quem decide sou eu, mais ninguém!
Detalhe na última ligação do dia:
- “Eu não quero pagar a consulta! Eu quero apenas colher um preventivo. A médica não precisa consultar, ora!”, disse uma paciente à secretária.
Pessoal, será que existe uma maquininha pra colher preventivo que eu possa colocar ao lado da máquina de café, lá na sala de espera?
Eu poderia incrementar, também, com um aparelho de lava a jato:
“Faça seu preventivo e ganhe uma ducha grátis! Só que a ducha vem antes, tá?”.
Olhem que idéia brilhante! Um lava-jato, uma secadora e - VAPT! - direto para a mesa ginecológica.
Quem me admira e me respeita tem que saber que tudo o que eu gasto é pago com meu suor e não estou brincando de médico e paciente - apenas tento me sustentar.
Até quando? Não sei...
Depois de fechado o expediente, fiz o balanço do dia: NEGATIVO DE NOVO.
Fechei as portas e vim louca escrever no meu site.
Leila Marinho Lage
Novembro de 2005