Clube da Menô

A minha vida só é possível incrementada!

Textos

O último a sair apaga a luz e fecha a porta

Imaginem. Tentem simular em suas mentes:

Uma médica, vestida com tailleur e saia brancos, um sapato escarpin, também branco, óculos (lógico), cabelo preso, com um coque armadinho atrás, a boca com um baton bem vermelho, exalando um Carolina Herrera até a esquina. Ah! Meias! Meias finas longas, com cor levemente mais escura que sua pele (ela perdeu a hora da depilação à cera); uma pulseirinha (banhada a ouro, pra ladrão roubar), com (lógico) umas pedrinhas verdes para simbolizarem a medicina; no pescoço, um pingente com suas iniciais (coisa tão meiga..) e na orelhinha mimosa, pérolas - duas perolinhas, amareladas, herança da avó... As unhas estão longas e pintadas de rosa para não chocar muito. Sem anéis - médicas não gostam de anéis – mas com uma tornozeleira bem fininha, adquirida na ultima viagem à prestação que fez pra Itália. Ela está com leves olheiras por causa do plantão que faz lá na baixada fluminense.

Situação:
 
Esta “primeira dama” hipocrática resolve reclamar com um plano de saúde o motivo das glosas em suas consultas eletivas. Foram dezenas de consultas não pagas no mês retrasado. Sim! Ela recebe dois meses depois!

O valor é muito alto: R$ 42,00 cada uma. Um partinho gira em torno de uns R$ 800,00. Se ela atender a partir de 22:00 h ainda tem mais 30%! É coisa pra caramba! Presumindo que a pobre atenda várias pessoas, até dá pra fazer um belo supermercado...

Ela começa a sentir uma bolha no pé e disfarça, tirando o sapato por debaixo da mesa, enquanto o funcionário analisa sua papelada. São quatro papéis para cada consulta, tudo preenchido à mão – data, código da rua aonde ela trabalha, assinatura em duas vias, assinatura dos pacientes, código da doença, código da do tipo de consulta e por ai vai... Ela tem que ver cada procedimento médico não pago em seu faturamento e sair correndo para um congresso.
 
Não que ela possa pagar um congresso (geralmente uns R$ 400,00 cada), mas é preciso ter currículo. Daqui a uns anos ela poderá ser impedida de trabalhar por não estar atualizada... Não deu pra fazer "pós" em nada, nem mestrado. Só mesmo uns congressinhos, de vez em quando, vai salvá-la. Serve qualquer porcaria. O importante é ter um comprovante que assistiu congressos e pode ser considerada apta a exercer medicina.

Ela até pediu emprestado o carro novo do primo para não fazer feio diante dos colegas. Os time brakes são animados... A doctor pode comer de tudo e ainda faz pose para fotos, que vão sair no jornalzinho da classe. O problema é se equilibrar o escarpin...

O funcionário percebe um cheiro algo desagradável no ar, misturado ao Carolina Herrera e diz à doutora:

- "A senhora esqueceu de colocar - aqui neste espaço, tá vendo? - a hora que a paciente saiu de seu consultório. Não vai dar pra pagar!".

- "Mas... (ela se conteve para não colocar uma interjeição imprópria, tipo: cacete! porra!).... eu não lembro! Como posso preencher tanta papelada e atender dezenas de pessoas?".

- "Pra que serve a secretária?!", disse o especialista.
 
- "Ela está mais atrapalhada do que eu com estas normas atuais!".

- "Então, contrate mais uma! A senhora é doutora! Não pode se ocupar com trabalho burocrático!".

- "É... Estou pensando em mandar a faxineira embora e substituir pela sua mãe, pra ser minha recepcionista. Ela lava privadas?".

O rapaz, não entendendo a resposta, já que seu QI foi muito bem escolhido para tal cargo, devolve:

- "Não tem jeito. Não colocou a hora, se ferrou – consulta feita de graça! Passa pra outra".

- "Bem, tem esta cirurgia aqui, que pagaram a metade do que eu esperava".

- "Claro! Esta paciente é de um plano que dá direito a penico coletivo! Se fosse do plano superior, que dá direito a penico privativo, a senhora ganharia o dobro!".
 
- "Poxa! Então, quer dizer que, se eu operar alguém com plano básico, a cirurgia tem menor valor? O que tem a ver minha cirurgia com a categoria de alojamento do doente?".

- "É contrato. Nada posso fazer. Tudo é mais barato: a gaze, o quarto, a comida... E a senhora não sabe interpretar direito. A senhora não ganha a metade num plano básico - ganha o dobro num plano superior, este, que dá direito a penico privativo...".

- "Tá bom, tá bom.. Olha isso daqui! Me tiraram 30% dos 300 paus deste procedimento cirúrgico. Por que? Justamente numa emergência que quase a doente morre! Eu saí de noite, enfrentando traficantes e blitz falsa, e me tiram 90 paus?! Vocês são uns merdas!".

- "Olha, eu não entendo de pau, só de glosas. Mas, é o seguinte: O horário de emergência é a partir de 22:00h. Pelo que vejo, a cirurgia aconteceu às 21:55 h... Desta forma... não foi emergência. Sabia que a senhora poderia até ser processada por nos ofender?!".

- "Ok, ok... (Ela pensou no aluguel da Barra da Tijuca e se controlou). Que tal chamar o colega médico, responsável por vocês e credenciado para falar conosco? Eu tenho aqui um pedido de exame de uma paciente, feito por mim, que vocês não autorizaram: uma ultra-sonografia de mamas. Eu coloquei indicação e tudo mais. Disseram que minha justificativa não era suficiente. E quem disse isso foi um atendente leigo por telefone. Quero saber qual é!".

- "Olha, minha cara doutora, isso é noutro departamento. Aconselho que escreva uma carta, mas escreva uma carta bem detalhada, viu? Faça sua reclamação e a gente encaminha para o médico. Ele está numa reunião, não pode lhe atender...".

- "Eu sei. Já fui casada com um desses. Eles estão sempre reunidos... Sei de todas as técnicas para se livrar de um médico".

- "Então, se a senhora conhece bem a nossas condutas, sabe que estamos aqui para lhe servir!".

- "Sim! Servem pra me deixar puta da vida, isso sim! Quando é que vocês vão pagar estas consultas que acabamos de consertar os códigos novos?".

- "Deixe-me ver... Espere um pouco mais.. O computador tá lento hoje... Ih! O sistema caiu".

- "Engraçado, o sistema nunca cai, quando é pra glosar, percebe? Vocês sempre têm na ponta da língua os códigos para isso".

- "Senhora (ela odeia que a chamem assim), eu acredito que só receba no próximo pagamento de sua produção (daqui a um mês) ou, no máximo, em 45 dias...úteis".

- "Quê?! Mas eu atendi essa gente aí há dois meses, caralho! Vou receber depois de quatro meses?!".

- "Calma, calma, senhora, ou eu terei que chamar os guardas...".

- "Olha aqui, seu babaca, se eu fosse presa seria mais bem tratada pelas sapatas. E, por falar nisso, toma esta porra de escarpin de presente!".

Lá se foi a doutorinha, mancando de uma perna, para seu acontecimento social".
 
O funcionário?:

- "O próximo!!!".

Pois, é, gente. Espero que depois que colocaram as novas normas de atendimento dos convênios médicos, que vigorarão a partir de 1 de junho de 2007 e, apesar do inferno que vai ser, pelo menos, nos respeitem e nos paguem direito essa merreca que nos é delegada.

Há racionamento de papéis para atendimento, significando que todos os médicos estarão preocupados. A maior parte dos planos de saúde ainda não conseguiram distribuir estas guias, mesmo que há meses este sistema esteja para ser implantado.

Não sei quem é culpado - só conheço as vítimas. Imaginem a desordem durante o dia, a perda de tempo, para preenchermos cada detalhe manualmente em guias complexas, ilegíveis, espaços restritos e cheias de códigos... Imaginem que dezenas de pessoas vão bater no meu consultório para trocar papéis e não vão entender que eu estarei ocupada trabalhando! Imaginem os erros de preenchimento e as futuras glosas! Imaginem a situação! Imaginem as pessoas tentando autorizar seus exames pelo telefone, ou, pior, indo aos setores de atendimento para pedirem pelo amor de Deus que seus pedidos sejam liberados! Se a coisa não funciona bem hoje, a partir de junho vai ser pior.

Os atendentes destes planos de saúde, inclusive os médicos destes serviços, tomam atitudes anti-éticas, e, muitas vezes, simplesmente dizem que o pedido do médico não é suficiente para a realização de algum exame; que o médico tem que fazer um relatório em receituário, explicando porque quer isso ou aquilo... Não basta a nossa indicação original, mesmo que ali diga tudo o que tenha que ser dito.

Que me perdoem, mas, se a coisa ficar difícil e se eu perder mais grana do que perco; se eu me aborrecer mais do que me aborreço, apagarei as luzes e fecharei as portas. Enquanto isso, peço às clientes que tenham paciência com os médicos que atendem convênios. Não somos nós os responsáveis pelo que vai acontecer nos próximos meses.

Rio, 27 de maio de 2007
Leila Marinho Lage

Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 23/07/2007
Alterado em 21/02/2009
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