Um lance
O final da tarde numa cidade grande sempre é complicado. Só pensamos em voltar pra casa em meio a um trânsito infernal, cansados, cheios de preocupações e problemas não solucionados. Não dá vontade nem de olhar para o lado... Seguimos retos, objetivos, autômatos, zumbis, anestesiados de nossas próprios pensamentos.
Consigo morar num lugar que ainda guarda um certo ar de interior: pessoas sentam na frente das casas para conversar, crianças brincam de bola, o padeiro na bicicleta, cachorros fuçando os cantos e sempre alguém para os alimentar. Subúrbio, reduto dos desenganados... É como pensam... Mas, não é.
Decidi morar perto do meu trabalho e jamais me mudaria para a Zona Sul ou Barra da Tijuca. Ao contrário de muitos colegas, o meu sonho de consumo é viver longe daquilo. Aliás, o meu sonho de consumo é viver muito longe daqui. Se eu não morrer antes, e ter como moradia o fundo da terra, eu vou realizar meu sonho.
Terminei meu trabalho e parto daqui a pouco para uma jornada dentro de madrugada em um hospital. O mau humor me contagiou hoje e tive que me controlar para não prejudicar as pacientes. Fui rígida, mas não grosseira. Sei que fui muito séria, sem brincadeiras, muito profissional. Quem me conhece não deve ter gostado nada, nada... Pouco sorri, pouco falei, pouco fui eu mesma.
E séria eu saí do consultório. Não sei a razão, mas olhei para o lado. Passo todos os dias por uma rua residencial, coisa que faço há anos. Ela ainda tem muitas casas e são todas lindas. São de pessoas que vieram pra cá há décadas, construíram seus imóveis, investiram no bairro e jamais vão sair daqui. Mas, eles envelhecem e seus descendentes, com certeza, vão vender estas casas, que serão em breve estabelecimentos comerciais.
Hoje em dia as pessoas que possuem alguma grana estão emigrando da Zona Norte, com a imbecil ilusão de que nos bairros nobres a coisa é mais tranquila - se bem que a maioria pensa apenas em status mesmo...
Olhei para o lado e, em segundos, a minha vida passou pela cabeça. Analogias emocionais.
Vejo sempre a mesma cena: um casal de velhos sentado na varanda de uma casinha típica da redondeza. Um jardim, cachorrinhos, uma cadeira de balanço, um copo com algo translúcido, que não sei se é água ou aguardente - aquele copinho de geléia que todo mundo tem em casa.
O velhinho sentado na cadeira e sua esposa num banquinho, ao lado dele, sempre no final da tarde. Eles estão sempre calados, não conversam. Pelo menos, é o que vejo em segundos. Se estes segundos fossem multiplicados, dariam anos de silêncio. Eles devem estar beirando os oitenta e começaram este diálogo há muito tempo.
Fico pensando por quantos dramas eles passaram, o que ela já sofreu, o que ele renunciou. Será que o diálogo existiu? Será que hoje as palavras não têm o mesmo peso?
O diálogo é a única coisa que fica, quando o sexo não tem mais valia, quando todos os artifícios se vão, ao chegar a velhice. os dois devem ter sido muito bonitos. Um casal que aparentemente é feliz. Mas, se fôssemos analisar apenas a aparência, a maioria dos casais que conhecemos é "feliz“.
Envelhecer ao lado de... Hoje não se pensa mais assim. Encontrar aquela pessoa que possa envelhecer ao nosso lado. É como se fôssemos eternamente jovens e hígidos.
Muitos casais só se entendem na velhice, quando o afã pela matéria e pela futilidade se vai. Fica a única coisa que une um casal: a compreensão, a amizade, a parceria.
Não haveria motivo de aquela mulher estar ao lado daquele senhor, num dia que finda, olhando o copo, olhando o nada, olhando um futuro que terá um fim.
O que será dela ou dele se o outro se for? Será que quem fica sentará de novo no banquinho? Certamente as caladas coisas serão substituídas pela saudade.
Cheguei em casa e resolvi escrever isto, provavelmente por saber que por mais um tempo vou esquecer de olhar para aquele casal, até o dia em que eu não os verei mais.
Leila Marinho Lage
Rio de Janeiro, outubro de 2007
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