Homúnculo
Hoje eu devaneei no trabalho. Em pleno atendimento à uma paciente eu viajei. Não que eu tenha me desviado do que ela falava ou de meu raciocínio, mas eu a ouvia enquanto tinha pensamentos “paralelos”, ou, talvez, nem tanto.
Eu acho que estou ficando cada vez mais “escritora” na minha vida e, se até agora eu passei a vida profissional analisando e concluindo filosoficamente as coisas só para mim, agora sinto necessidade de colocar no “papel” aquilo que ouço, aquilo que me toca.
Hoje foi uma antiga paciente, a qual eu tive a oportunidade de descobrir um câncer de mama. Hoje posso dizer que ela está curada desta doença "maligna". Isso foi coisa pequena no seu entender e ela enfrentou cirurgias e tudo mais que se passa quando nos deparamos com câncer.
Por que digo que foi um problema menor? Sua alegação é de que em nenhum momento ela teve "dor", que é sua companheira diária há anos.
Ela tem artrite reumatóide, uma doença que produz anticorpos contra as articulações e ossos, causando uma inflamação crônica, dores intensas e deformidades.
Apesar de ser uma mulher de meia idade, ela é muito bonita e altamente produtiva; nunca quis se aposentar, pois se dedica a entidades públicas ligadas ao bem-estar de pessoas carentes, principalmente crianças.
Seus pés e mãos estão se deformando cada vez mais; é submetida com frequência a cirurgias reparadoras; toma uma série de medicações analgésicas e anti-inflamatórias agressivas ao organismo, e sem elas não pode ficar.
De vez em quando ela faz uma plástica aqui ou ali para retirar um papinho ou um "pé de galinha" - isso quando a artrite deixa...
Não quero falar da doença, mas no olhar dela. Aquelas pessoas que convivem com o sofrimento, seja qual for, principalmente físico, olha diferente, fala diferente, suas palavras soam diferente, com mais verdade - mesmo que seja falando o óbvio que todos sabemos, mas que não vivenciamos.
Existem graus de acometimento orgânico na artrite reumatóide, que vão de leve a grave. Outros órgãos e sistemas podem estar comprometidos também. Seu quadro é sério, entretanto ela tem, de certa forma, orgulho de tantas complicações que possui.
Hoje ela apareceu com claudicação na marcha, ou seja, mancando. Eu sabia que ela ia operar o pé para retirar tumores, comuns de aparecer na doença (Neuroma de Morton). Só que sua queixa era no outro pé, que tinha torcido... E disse: "Po! Da cirurgia estou legal! Foi mais uma de muitas que ainda tenho que fazer! O problema é o meu dedinho mindinho aqui que deve estar com uma fratura.
Perguntei se ela passou bem da cirurgia. Ela disse que foi fácil e rápida, com anestesia local...
Aí é que entra o tema desta crônica. Ela se submeteu a uma anestesia local no pé para uma cirurgia.
Depois de uma anestesia, tudo bem ora, mas uma agulhada ou várias no pé não é nada fácil!
Há mais ou menos um ano eu fiz o maior escândalo diante de uma amiga dermatologista, quando tive que fazer uma pequena retirada de tecido do pé. Eu achava que estava com câncer... Todo médico pensa que tem câncer quando não sabe o que tem... No meu caso foi apenas uma reação inflamatória idiota aí.
Aqui passo o diálogo entre eu e minha médica:
- "Espere! Não enfie a agulha agora! Deixe eu me preparar psicologicamente!".
- "Que que é isso?! Só vai DOER um pouco!".
- "Mas, dor no pé dói muito!".
- "Não, não...".
- "Sim, sim!!! Na mão e no pé!".
- "Calma... Calma... Tá quase acabando... Pronto!".
- "Ai! Que dor filha da FDP!".
- "Eu, heim! Nem parece médica...".
- "Eu aqui não sou médica. Sou um ser humano sendo espetado. Na verdade eu sou apenas um homúnculo!" (Leiam explicação abaixo deste texto).
TUDO é o que concebemos como dor, amigos. Fora algumas pequenas dores ocasionais em mãos ou pés das quais já sofri, eu sei que as extremidades de nossos membros possuem muito mais terminações nervosas para dor do que a maioria do corpo.
Quando a gente tem como informação dores anteriores, experiências de dor, certamente teremos medo de outra agressão igual. Geralmente temos mais medo daquilo pelo que já passamos em outras épocas - o que é diferente do medo fantasia, do medo do desconhecido. No meu caso, eu tinha informações pessoais e teóricas demais...
Por outro lado, a gente tem em diferentes épocas da vida medos diferentes em relação à mesma ameaça. Isso depende de nossa experiência adquirida e de como a vamos formular emocionalmente.
Voltando à minha paciente da artrite, eu lhe perguntei se doeu muito a anestesia. Ela me olhou fixamente e disse: "Quem tem artrite reumatóide não tem medo de agulhas. A dor da artrite é maior do que as infiltrações que eu faço nas articulações ou de uma simples anestesia na mão ou no pé. Pelo contrário! Isso me alivia as dores terríveis, por isso, benvindo".
Realmente... Existe um portal para a dor no nosso corpo, modulado pelo nosso cérebro: passa para com mais intensidade nossa consciência a dor maior; as outras não são informadas da mesma forma.
É o caso do trabalho de parto: é comum uma mulher nem lembrar que foi anestesiada na vagina para que possamos cortar e dar mais espaço para a saída do bebê (episiotomia). Mesmo que não dê tempo de se anestesiar (devido à uma possível emergência), nunca vi ninguém reclamar posteriormente de que a pior dor foi esta, mas, sim, as contrações uterinas.
No entanto, se a gente vai a um salão de beleza e, de repente, a manicure nos tira um bife, aquilo pode ser uma dor surpreendentemente desagradável. Porém, se nós mesmos nos cortamos com um alicate de cutícula e fazemos um buraco no dedo, da mesma forma que a outra pessoa fez, talvez não doa tanto, pois estamos mais relaxados e atentos à outra ação (cortar cutícula e, não, em se preocupar em ser ferido).
Não existe nada para nos fazer aceitar uma dor do que uma outra dor. O pavor da morte também é um excelente analgésico... Geralmente aceitamos e toleramos qualquer dor que nos permita sobreviver ou viver melhor. Medo, desconhecimento, falta de experiências pessoais nos fazem mais ou menos apavorados e sensíveis.
Talvez só o amor supere o sentimento da dor física. Parece romântico ou filosófico, não é? Eu acho que não. Não na minha profissão...
Quando a paciente em questão me deu uma aula do que é sofrimento, veio à minha memória a cena de uma situação real que aconteceu com outra mulher. Ela estava com seu filho num CTI. O menino estava muito grave, com meningite. Ele olhou para a mãe e disse: "Mãe, eu não quero morrer".
Esta criança só tinha oito anos e morreu no mesmo dia. Com certeza absoluta esta mãe passaria por todas as dores físicas sorrindo, se pudesse aliviar o sofrimento dele, principalmente os seu medo.
Leila Marinho Lage
Rio, 12 de fevereiro de 2008
http://www.clubedadonameno.com
Homunculus de Penfield
(Texto extraído da Net)
Representação gráfica de um organismo humano em miniatura, fazendo a correspondência entre o córtex cerebral e as diferentes partes do corpo.
Na década de 1940, Wilder Penfield, um brilhante neurocirurgião canadense, assistia a pacientes portadores de epilepsia clinicamente intratável. Sabe-se que na epilepsia, antes de uma crise, os pacientes podem experimentar uma "aura," isto é, uma espécie de aviso de que ela está prestes a ocorrer. Penfield pensou que, se pudesse provocar esta aura com uma leve corrente elétrica no cérebro dos pacientes, encontraria então o foco da crise epiléptica. E que, com a remoção cirúrgica desse tecido cerebral afetado, também pudesse curá-los.
Com os enfermos conscientes, embora anestesiados, Penfield abria seus crânios para localizar e remover os focos cerebrais identificados como epileptógenos. Uma técnica cirúrgica experimental na qual ele começou a colecionar casos bem sucedidos. E que conduziu a uma descoberta extremamente importante. Ao estimular eletricamente o lobo temporal, situações vivenciadas pelos pacientes (muitas vezes esquecidas) eram naqueles momentos por eles recordadas. O que significava dizer que existe uma base física para a memória.
Prosseguindo suas investigações, Penfield , baseado nas informações que obtinha de seus pacientes durante os atos cirúrgicos, passou a identificar as relações das áreas do córtex cerebral com as diversas regiões do corpo humano. Até obter um mapeamento cerebral em que as várias regiões do corpo ficavam representadas no córtex, porém em tamanho e disposição diferentes de como elas se encontram no corpo. E, para facilitar a compreensão deste fato, idealizou as figuras dos homúnculos corticais.
Um homúnculo sensorial e um homúnculo motor. O primeiro representado com os lábios, as bochechas e as pontas dos dedos desproporcionalmente grandes por serem as partes mais sensíveis do corpo e daí exigirem áreas corticais maiores. E o segundo com a boca, a língua e os dedos, especialmente os polegares, também avantajados por acontecerem nestas regiões corporais os movimentos mais complexos, que se relacionam com a vocalização e com a preensão.
No córtex, as áreas não se dispõem na ordem com que as regiões representadas estão de fato no corpo o que contribui para tornar os tais homúnculos ainda mais grotescos.
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 12/02/2008
Alterado em 23/03/2009