Meu ouvido direito
Não sei que dia foi, mas eu estava assistindo a uma novela... Só mesmo num trabalho cansativo ou muito doente eu ligaria a TV. Se eu liguei na hora de uma novela, não devia estar doente. Se fosse Big Brother, aí, sim, eu estaria muito doente - da cabeça...
Se Big Brother fosse um programa para ajudar a população, seria utilidade pública, entretanto, uma coisa que move milhões em reais e aliena milhões de pessoas, é utilidade particular.
É assim mesmo... Há males que vêm pra “bens”. Algum proveito a sociedade deve tirar de Big Brother e, talvez, só o entendamos dentro de algumas décadas. Pelo menos em novelas a gente assiste momentos (súbitos que sejam) de excelentes interpretações; atores e atrizes maravilhosos que se perdem nesta máquina que é a TV. Se não fosse a televisão, a maior parte dos artistas estava no ostracismo. Pena que muitos já estão, quando poderiam estar usando sua arte para acrescentar cultura à nossa cabecinha de merda.
Infelizmente o povo é educado pela televisão. Talvez até mais do que pelos pais. Existem quatro tipos de educação: a da família, a da escola, a da rua e a da televisão. A quinta é a da Internet, mas ainda não atingiu a massa da mesma forma que a telinha.
Por décadas a gente tem o hábito de ligar a TV no canal 4. Se lá nada passa de bom, então, vamos para outros canais. Não adianta... É estatística! Como a minha TV está programada para ser ligada na TV Cultura, fica mais fácil fugir do ranço do “quatro”. Mas no tal dia eu estava ao lado de uma televisão pequena que eu comprei pra ficar perto do pc. E lá eu fui para o “quatro”...
Tanto fazia o que estava passando, eu só queria distrair o ouvido direito, pois o outro estava antenado no que eu fazia no computador. E o meu ouvido direito foi quase deflorado com o absurdo que eu ouvi naquela noite. Era a novela Duas caras, que está passando atualmente no horário nobre.
Por falar nisso, horário nobre é quando o nível de audiência é maior. Óbvio! É quando as pessoas estão chegando em casa ou estão jantando e querem ver algo interessante. Como a TV indiscutivelmente sempre foi uma febre, e como é ela a responsável desde os primórdios por estarmos informados e termos momentos de lazer, ficou-se estabelecido que nesta faixa nobre, entre 19 às 22 h, haveria os programas mais interessantes e financiados pelos melhores clientes. Com o tempo, esta filosofia foi se envenenando, e entre programas interessantes, como certos jornais e filmes, a gente assiste cada porcaria... Para mim o que realmente presta na TV fica em horários aos quais a minoria assiste.
Gosto de novelas, gosto dos atores, adoro certas propagandas, uma vez que eu desisti de publicidade para fazer medicina, mas, poxa, se a novela é tão assistida, então por que não fazem com que ela seja um veículo de cultura e aprendizado? Até é, mas, de vez em quando a coisa pega. Foi isso que pegou no meu ouvido direito.
Não sei bem o enredo, mas entendo que Julia (atriz Débora Falabella), filha de um ricaço, se apaixonou por Evilásio Caó (ator Lázaro Ramos). Seu pai, o ator Stenio Garcia, odeia este romance porque Evilásio é negro e pobre. Julia está grávida e mora em péssimas condições no barraco de Evilásio, um parceiro honesto, trabalhador e muito carinhoso. Julia está grávida.
Muito bem. Até aí, uma trama perfeita, como muitas que já passaram na TV Globo e na qual eles têm experiência de décadas que pode dar certo na audiência.
Apesar dessa tanta experiência que a Globo tem, inclusive tendo consultores profissionais para diversos assuntos a fim de que não se cometa gafes, eu quase fiquei sem tímpano. Isso foi causado por uma infecção cultural. Esta doença, que se chama interesse em audiência, a meu ver, passou naquele dia uma série de informações erradas para a população, que, inclusive, pode estar neste momento influenciando muita gente. E estas informações são todas em relação à minha profissão: medicina.
Vou bater um papo com Dona Menô e falaremos juntas sobre o assunto, se desejarem que eu conte... É só me dizerem.
Leila Marinho Lage
Rio, 15 de fevereiro de 2008
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