Meu ouvido direito, cap II - Tragédia pouca é bobagem
Continuando a série “Meu ouvido direito”, vamos ao segundo capítulo.
Novela Duas caras, em algum dia do mês de fevereiro de 2008, TV Globo. Meu ouvido (o esquerdo, que eu acho que funciona melhor), numa edição de som. O direito, antenado na novela (essa não tem anjo, né? A do anjo é antes, né?).
Esta é aquela novela do dono da favela, Antonio Fagundes. Galã, excelente ator, sucesso quando fez o filme “Deus é brasileiro”. Ele continua sendo Deus, só que na favela.
Lázaro Ramos... Este cara é maravilhoso, charmoso, inteligente, bom ator, simpático, empático. Ele é o príncipe negro da nobre Julia, a atriz Débora Falabella. O contraste: Ibony and Evory, preto e branco, Romeu e Julieta. Só falta pensarem numa adaptação da tragédia Shakespeariana e os dois morrerem pelas mãos de um traficante.
Se o traficante não o matar, e, se eu vir esta novela novamente, quem vai matar o cara sou eu...
PRIMEIRO DIAGNÓSTICO DE JULIA - EU FIZ XIXI?
Quantos meses ela tinha quando rompeu a bolsa amniótica e entrou em trabalho de parto? Sei lá. Não fiz seu pré-natal. Por sinal, diante de tantas coisas que ela apresentou naquele capítulo, deduzo que ela ficou tão dura por ter sido expulsa de casa que nem tinha como ir ao médico. E vão entender por quê.
Quando a moça começou a perder líquido, logo sua mãe disse, com aquela cara de idiota emergente: "Você rompeu a bolsa... Está com um parto de risco...”.
Apesar de estar trabalhando, eu prestava atenção na novela. Isto me lembrou fortemente as comédias que escrevi para minhas antigas palestras de gestantes – só que ali tudo era dito em tom de drama.
Digam-me: Alguma mãe iria dizer tais palavras nesta hora?! Não! Diria: “Tragam um carro!”, “Chamem uma ambulância!”, “Ligue para um médico!”, “Calma, minha filha. Isso é perda de líquido antes do tempo, mas tudo vai dar certo!”.
Não... A mãe, a atriz Marília Pêra, com a personagem Gioconda, socialite, falou: “Você está com risco de morte pra você e o bebê...”.
O intervalo começou. Percebi um zumbido estranho no meu ouvido direito, mas não podia tirar os olhos e o ouvido esquerdo do que faziam no pc.
SEGUNDO DIAGNÓSTICO DE JULIA - BACANA NÃO PERDE A POSE
Volta a novela e, mais do que depressa, eu dou com coçada básica no buraco do ouvido para suportar o que estava por vir.
Ao chegar ao hospital, Julia foi carregada rapidamente para a sala de parto. Uma clínica linda, tudo branquinho. Como não existem hospitais públicos tão branquinhos, concluí que Julia estava internada numa clínica particular ou conveniada com planos de saúde particulares. Até existem hospitais do governo novinhos por aí, cheios de gueri-gueri, mas, certamente, em todos eles veremos dezenas de pessoas acotoveladas, esperando um atendimento, ou jogadas em macas, por não haver vaga em leitos.
Ou seja: o pai a deserdou, mas pagou um hospital legal, certo? Se aquilo era um hospital público, digam-me por favor, o endereço!
Julia entrou na sala de parto com a equipe e o marido. Julia desmaiou. Como naqueles desenhos animados, seus olhinhos fecharam como persianas. Aparelhos começaram a apitar enquanto uma equipe médica fazia o parto, todos calados - atores figurantes. O marido entrou em pânico e começou a gritar: “Julia! O que você está sentindo?! Julia, meu amor! Responda!”.
Ele era o único a falar, ninguém abria a boca. Eu me imaginei na pele do médico que estava fazendo o parto. Parei de trabalhar. Nem meu tímpano era mais virgem...
Dona Menô estava na minha sala assistindo à mesma novela e perguntei:
- “Do que ela desmaiou?....”.
- “Sei lá, bicho... Estão falando aqui numa tal eclâmpsia”.
“Então, ela era hipertensa na gravidez”, pensei eu. Se falaram a palavra "eclâmpsia", suponho que ela tenha tido um pico hipertensivo grave e apresentava convulsão. Pré-eclâmpsia é a hipretensão da gestante; eclâmpsia é uma complicação grave desta hipertensão arterial.
Parei de olhar para minha tela do pc e olhei para a TV. Eu não via Julia tremer, estrebuchar ou babar. Ela apenas fechou os olhos como a princesa adormecida. Perguntei para a Dona Menô:
- “O que o médico está fazendo com o marido histérico?”.
- “Merda nenhuma. Nem vejo o médico”, ela gritou lá da sala.
A cena do marido em pânico, atormentando uma equipe médica, e esta, passiva diante daquela palhaçada, fazia com que minhas orelhas abanassem. A Globo deveria ter colocado Hélio de la Peña (aquele que é negro, de olhos verdes, com cara de doido), do Casseta e Planeta, pra fazer o papel do médico. Ia virar comédia... Pelo menos eu ia rir de algo engraçado. Imaginem de la Peña falando para o Caó neurótico:
“Ô, cara, cê acha que teu sogro te odeia porque tu é preto?! Não! É porque tu é um porre! Vê se te manca e sai fora!”.
Até aqui Julia teve bolsa rota prematuramente e iniciou uma grave crise hipertensiva. Para quem quer saber e não vai desmaiar, bolsa rota antes de se completar o termo (o final) da gestação, é amniorrexe prematura. Quando a bolsa rompe quando o bebê já está maduro, com 9 meses, mas a mãe não está em trabalho de parto, chama-se amniorrexe precoce.
Continuemos.
TERCEIRO DIAGNÓSTICO - SUPER MÉDICOS
O bebê nasceu. Por um capítulo ninguém mais falou na paciente. Aliás, é sempre assim. Quando o marido está na sala de parto, ele só tem atenção para a esposa até a hora de nascer seu filho. Depois, é como se a mulher se recuperasse por encanto - ele só tem olhos pra criança.
Depois de outro intervalo comercial, eu parei de trabalhar e prestei atenção a uma coisa que perfurou meu cérebro (pois o tímpano já estava arrombado): assim que o bebê nasceu, em questão de minutos, o médico indicou fazer uma troca total de seu sangue (exosanguíneo transfusão). Isso é comum depois de diagnosticado que a mãe teve incompatibilidade ao fator Rh do bebê, a não ser que o bebê tivesse alguma mal-formação nas vias biliares ou adquirido alguma infecção grave intra-útero, ou algo assim.
Significa que a criança nasceu gravíssima e extremamente amarela (ictérica) Significa que a mãe não fazia nenhum exame de sangue; que ela não fazia pré-natal. Significa que esta criança estava mal há muito tempo. Nada mais justificaria com tanta urgência tal procedimento. Nunca vi doença tão rapidamente diagnosticada. Nunca vi médicos que só de olharem já sabiam que a criança precisava ser transfundida. O laboratório deste hospital é de primeira e o corpo clínico é de elite...
QUARTO DIAGNÓSTICO – FALTA DE SANGUE
Voltei ao meu trabalho. Meu ouvido esquerdo e os meus dois olhos se desviaram da novela. Mas não por muito tempo, pois, a seguir, ouço um médico aparecer na sala de espera para convocar alguém que tivesse o mesmo tipo sanguíneo da criança para ser o doador. Isso em questão de minutos!!!
Eu tive que me levantar da cadeira e procurar algodão para tapar meu ouvido esquerdo, senão ele também ia pro bebeléu. Comecei a sentir vontade de vomitar. Meus Deus! Se existe neste hospital uma infra-estrutura tão boa, será que não tinha um banco de sangue por perto? Além do mais, preciso informar duas coisas:
- Nos casos em que se precisa de transfusão, e o tipo sanguíneo é raro, todos os bancos de sangue são acionados, principalmente para os doentes de CTI – eu não tenho certeza, mas o recém-nascido, apesar da situação grave, não me pareceu ter estado numa UTI neonatal.
- Quando se doa sangue, este sangue tem que ser estudado previamente, antes de ser transfundido. Leva muitas horas, senão dias, para se estudar uma bolsa de sangue. Ninguém vai administrar um sangue que não foi pesquisado para as doenças básicas: HIV, hepatites etc. Além do mais, para ser doadora, é necessário que a pessoa responda a várias perguntas, tais como: se teve câncer, se teve doenças infecto-contagiosas, seu comportamento sexual etc. Não é assim de chamar qualquer um com o tipo sanguíneo do doente e mandar bala, por mais que a situação seja grave!
Até aquele momento Julia teve: bolsa rota, eclâmpsia, seu bebê nasceu extremamente mal e não havia sangue para doar para o pobrezinho - isto, em uma das capitais mais importantes do Brasil, numa clínica de bacana. Imaginem, então, num hospital pobre... Estamos “maus”...
Pior estamos por termos médicos que deixam maridos atrapalharem uma situação séria, emergencial, tomando conta da “cena”. Ainda bem que é só em novela, não é?...
Desliguei a TV. O algodão não vedava o som do meu ouvido esquerdo (o bom). Só ousei ligar a TV hoje. Eu queria saber como estava Julia e o bebê. Na novela deve ter passado só uns dois dias. Para minha surpresa, Julia estava sentada num leito de quarto particular, toda serelepe. Seu filho estava num bercinho ao lado, pesando mais ou menos uns três quilos, rosinha (rosinha, não, pois ele era mulatinho. Vamos dizer, corado).
Estes médicos não são médicos; esta clínica não é clínica! Eles são deuses e estão no céu. Conseguiram fazer milagres. Nenhum dos dois estava mal, nenhum dos dois estava em Centro de Tratamento Intensivo. Nunca vi recuperação tão rápida!
A revolução no meu estômago começou novamente e eu fiquei com medo de me tornar uma surda com úlcera. Preferi poupar o que me restava dos sentidos e vim escrever.
Leila Marinho Lage
Rio, 21 de fevereiro de 2008
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 22/02/2008
Alterado em 21/02/2009