Tolerância Zero!
Dia 26 de março de 2008. Eu tentava estudar. Era manhã. As manhãs em minha casa durante a semana são horríveis. Como tenho uma vida noturna, estar acordando às 9 horas é como se estivesse acordando às 5 da madrugada. O som de uma escola em frente me perturba o tempo todo. Dependendo do meu humor, eu acho que o som das crianças gritando é idílico ou o inferno astral..
Eu ouço em frente ao meu quarto uma professora: “Repitam: Trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco”... Uma monótona repetição de contas, onde as crianças acompanham com suas vozes singelas. Lembrei das minhas intermináveis explicações diárias de como se usa pílula anticoncepcional e da rotina de colher preventivos, olhando tudo quanto é tipo mulher de dentro pra fora, ou vice-versa. Palavras repetidas ao longo de muitos anos. Mas para cada uma delas é uma novidade, um aprendizado. Para mim, uma rotina cansativa, extenuante, monótona – como uma professora primária.
De repente, provavelmente do pátio abaixo, na mesma escola, eu ouço uma professora de educação física dizer: “Tolerância zero! Estou cheia de vocês. Pensam que estão na rua? Pensam que estão numa festa? Pensam que estão na favela?!”.
Aí, eu parei de achar que aqueles sons eram apenas vozes altas que incomodavam meus ouvidos mas que encantavam meus devaneios.
O caso é o seguinte: Morar numa favela não quer dizer necessariamente ser um bandido. Pode até ser um marginal, um vez que marginal significa viver à margem de.
Se aquela criança que estuda fez alguma besteira, por mais que tenha sido ofensivo à professora, mesmo que esta criança seja filha de um criminoso, ela está numa escola. Ela estuda, e lá ela teria que ser considerada uma igual. Ela teria que ter chance de aprender sobre os valores da vida, sobre a VIDA.
A professora falou para todos. Ela estava falando a todos que ali não era o lugar onde elas estão acostumadas a viver - numa favela, num buraco, na balbúrdia, no caos. Ela lembrou àquelas crianças que as mesmas eram marginais. Imaginem o complexo arraigado nelas ao longo de anos de segregação. Imaginem a raiva que estas crianças podem cultivar na formação de suas personalidades. Imaginem o quanto estas novas vidas escutaram e vão escutar.
De direito e dever vivemos. Se nem uma professora entende isso, imagine na sociedade. Se de direitos e deveres somos feitos, imaginem o quanto se é ferino saber que fomos privados deles.
Moro perto de uma favela. Qualquer carioca mora perto de uma, se não mora na mesma. A maior segregação não é o lugar, mas a relação humana, a incompreensão, o desrespeito, a indiferença o egoísmo, o desamor. Há muita gente por aí, principalmente educadores, que acham que estão contribuindo para um degrau no Céu ensinando crianças de “risco social” ou que já estão na criminalidade e abandono, mas, na verdade, não usam suas palavras com o coração e vivem a hipocrisia de atitudes filantrópicas, sorrisos bondosos e de piedade para com elas. Um dia se traem. Tolerância Zero!
A primeira coisa que criança precisa é de segurança; é imprescindível saber que existe um chão e um teto para que tenham alguma referência do que é casa. A segunda coisa é alimentação, uma vez que é na infância que nossos corpos se definem. A desnutrição é a primeira causa de baixo rendimento escolar e de uma série de doenças, muitas vezes fatais. A terceira coisa é o amor, amor verdadeiro. Nenhuma criança poderá se sentir um ser humano se não tiver amor. O homem necessita de amor para construir sua personalidade, e, aí, entra a família como fator preponderante para tal. A criança que não tem laços familiares afetivos, ou que não tenha um lar só poderá encontrar tais valores nas instituições que as protege e, dentre elas, a escola tem, na maioria das vezes, o poder de transformar a dura realidade da criança num mundo melhor.
A inclusão social não é um ato isolado. Música, dança, teatro, etc são apenas uma etapa, pois através da arte o ser humano expressa seus sentimentos e os desenvolve. O esporte, da mesma forma, oferece para a criança e ao adolescente armas para que eles possam entender o que seja respeito, parceria, confiança, criando através da competição noções de força de vontade e ideal. A figura do professor muitas vezes faz o papel do educador que o jovem não possui em seu meio. O ensino continuado e o entendimento das necessidades de cada indivíduo (na sua personalidade e no seu convívio social) são trabalho para formiguinhas. Poucos entendem o quanto são importantes nesta tarefa.
Dizem que é errado se dizer “a sociedade como um todo” – uma redundância, porque sociedade já é um todo. Porém, o que vemos é que existem várias “sociedades” dentro de um mesmo espaço físico. As classes sociais não se definem mais em três. Vemos que problemas sérios se mesclam nestas categorias.Os maiores deles são a droga e a violência (inclusive doméstica). Hipocritamente andamos quase tropeçando em mendigos, apressados para nossos trabalhos, olhando para o outro lado a fim de não vermos o que nos incomoda e não podemos efetivamente mudar. Ouvimos falar em assassinatos, estupros, agressões físicas, vício e tráfico de drogas, miséria, fome, abandono da saúde, assaltos, sequestros, desrespeito e preconceitos como se fossem uma guerra num país distante, até que algum deste tema toca à nossa porta de alguma forma.
Professor é como psicólogo. Conheço um monte de psicólogo que deveria fazer terapia por muitos anos até poder ter condição de atender alguém, mas exercem profissionalmente sua especialidade, falam, ouvem, criam opiniões, induzem. Seguem técnicas que nem eles mesmos sabem usar em suas vidas pessoais. Assim também é em outras áreas. Vemos gente sem a menor capacidade emocional, sem a menor experiência de vida para estarem no cargo que estão. E quanta gente de valor está por aí desempregada...
Aqui não cabe falar de governo, política e injustiças. Vejo aqui apenas um instante, dentre milhões de instantes que acontecem diariamente e que marcam. Pode ser que aquela criança guarde para sempre aquelas palavras da professora; pode ser que aquela criança nem tenha tido capacidade para entender o que ela quis dizer. Pode ser... Mas aqui lembro de alguns ditados populares que exemplificam o que ocorre na nossa sociedade:
De grão em grão a galinha enche o papo. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Quando na casa de ferreiro o espeto é de pau, mais vale uma andorinha na mão do que duas voando, e apelamos para a lei de Gerson (pra quem gosta de levar vantagem em tudo). A gente se afasta de onde não se é aceito e procura a nossa tribo. Daí, a máscara do educador cai, e a tal filosofia da inclusão social, tão cantada aos quatro ventos, contribui para mais um excluído, agora devidamente rotulado de cidadão.
Leila Marinho Lage
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 31/03/2008
Alterado em 21/02/2009